Um grito varou a noite. Aninhada no denso negrume, a cidade dormia profundamente... À exceção dos seres notívagos: prostitutas, viciados, policiais e boêmios pós-modernos, cafetões e vigilantes com suas patéticas e inúteis lanternas, mendigos abrigados sob marquises, enrolados em andrajos, ladrões e estupradores espreitando dos becos escuros, meninos e meninas que esmolaram o dia inteiro nos sinais, lambuzando os vidros dos carros, apresentando desengonçados números de malabarismo - tristes palhaços de algum circo exilados.
Teria sido mesmo um grito? Perguntaram-se atônitos. Não houve consenso. Em uma das dezenas de assembleias espalhadas pela urbe, um velho enfiado em calças puídas, com ar aristocrático e tom professoral, vaticinou:
- Como homem de Ciência, posso afirmar, categoricamente, que o som propagado pelo ar não fora emitido pelo aparelho fonador de uma humana criatura, isto é, de um homo sapiens!
Seguiram-se aplausos e risos de escárnio. Um catador de lixo subiu ao improvisado púlpito, encarou a plateia, pigarreou, tossiu e, sem dizer palavra, sofreu um infarto fulminante. Alguns se benzeram e olharam contritos para o infeliz. Um ex-pastor tomou um trago de conhaque e, encorajado, iniciou uma curta pregação sobre a vida após a morte. Os pequenos malabaristas sorriam estrepitosamente, divertidos com as carantonhas e bizarras circunspecções.
O homem cego sentado próximo à fonte começou a soprar uma gaita. Todos silenciaram. Com voz tonitruante, contou que uma jovem senhora encontrava-se entre as ruínas da concha acústica. Sentia fortes contrações. E o fruto do seu ventre decerto viera ao mundo ali mesmo, justo naquela noite sem lua e estrelas.
Subitamente, todos compreenderam que o inusitado grito não fora senão o vagido amplificado do rebento.
Uma senhora de idade imprecisa como o mundo, enrolada em um xale negro, achegou-se à pequena multidão. Anunciou, com um fio de voz trêmula, que acabara de testemunhar o nascimento uma menina: bela, pura e frágil como uma flor. Sua mãe - linda como um anjo - deu-lhe o nome de Esperança.
Os três meninos trocaram olhares e sorrisos cúmplices. Abandonaram a clandestina reunião e demandaram apressados a velha concha. Nas mãos, levavam tudo que possuíam: um pião, uma bola de pano e uma boneca sem braços, com que pretendiam, em segredo, presentear a recém-nascida.
A assembleia se desfez tão rápido quanto um raio. Uma estrela cadente iluminou o céu por um segundo...
Aracaju, 05 de abril de 2013.
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