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“Solução não está na redução da maioridade penal”, diz ministro do STF
Em entrevista, ministro Marco Aurélio fala ainda de mensalão, precatórios e investigação do MP
“Solução não está na redução da maioridade penal”, diz ministro do STF

Por Raissa Cruz

 

“Paga-se um preço por se viver em um estado democrático e é módico”, disse o ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, ao ser questionado pelo Universo sobre a não prisão imediata dos réus do mensalão. Em entrevista exclusiva, o ministro diz ainda que vê como utopia o pagamento de uma só vez dos precatórios, justamente como havia reclamado o governador Marcelo Déda; defende o financiamento público de campanhas eleitorais e mostra ser contra a redução da maioridade penal. E entre outras coisas, comenta a respeito da PEC 37 que retira do Ministério Público o direito de investigação: “penso que a emenda constitucional em curso não tem sequer razão de ser”. Confira:

 

Precatórios - O governador Marcelo Déda afirmou que diversos Estados vivem um momento de insegurança fiscal diante da derrubada pelo STF de parte da emenda dos precatórios, que dava aos Estados o direito de pagar as dívidas públicas parceladas. Agora, por decisão do STF, essa dívida seria paga de uma só vez. Qual o seu posicionamento a respeito da afirmativa do governador?

Marco Aurélio - A persistir o pronunciamento do Supremo, voltar-se-á à fase de impasse de 2009. Com a Emenda Constitucional nº 62, visou-se solucionar a pendência. Embora versando parcelamento do débito existente em dezembro de 2009 em quinze anos, pela primeira vez, veio à balha o instrumental viabilizador do cumprimento da obrigação. Refiro-me à vinculação da receita e a possibilidade de o Judiciário, inobservada qualquer das parcelas, implementar o sequestro de verbas públicas. Votei no sentido de expungir-se do sistema o que se mostra conflitante com a redação primitiva da Constituição Federal, purificando a regência do tema. A maioria formada, no entanto, a meu ver, ficou longe de atentar para o âmago da controvérsia, imaginando que, retornando-se ao estágio de dezembro de 2009, haverá o pagamento total da dívida de uma só vez, verdadeira utopia. O julgamento ainda não se encerrou, porquanto o Tribunal irá modular a decisão. A única modulação possível está no voto médio, no voto que proferi, procedendo-se a pequenos retoques. O mais interessante é que credores buscam a prevalência da Emenda Constitucional nº 62. Recebi memorial do Movimento dos Advogados em Defesa dos Credores Alimentares do Poder Público (MADECA) no sentido de ter-se a manutenção do sistema. Aguardemos um pouco para ver o que acontecerá após o pronunciamento do Plenário e a reflexão havida a partir de então.

 

Licitação do Transporte - O senhor esteve discutindo recentemente em um congresso sobre as obrigações do Poder Público e a iniciativa privada quanto às permissões ou concessões para a prestação do serviço de transporte público. Destacando a realidade vivida pela Grande Aracaju (capital sergipana), o que precisa ser feito para se haver uma licitação regular, mantendo a integração do sistema nos Municípios, sem que as empresas e, principalmente, os cidadãos, sejam prejudicados?

Marco Maurélio - A integração do sistema de transporte considerados municípios diversos pressupõe a criação da região metropolitana mediante ato da Assembleia Legislativa do Estado, devendo capitaneá-la uma autarquia estadual. Somente assim é possível cogitar de melhoria na interligação de municípios presentes os interesses dos cidadãos em serem transportados a modo e tempo, sem a sobreposição de dispêndios com as passagens.

 

Maioridade Penal – Tramita no Congresso Nacional um projeto de lei complementar (nº57), inclusive de autoria do deputado sergipano André Moura, que busca a redução da maioridade penal para 16 anos. O senhor acredita que essa é a forma mais acertada para se conter o crescimento do índice de violência partindo de menores? Ou quais alternativas podem agir de encontro com essa realidade?

Marco Aurélio - Uma coisa é haver algumas mudanças no Estatuto da Criança e do Adolescente objetivando rigor maior quanto à delinquência dos menores de 18 anos. Algo diverso é alterar o preceito da Carta de 1988 que estipula a maioridade penal aos 18 anos. As controvérsias surgirão, até mesmo para definir se essa cláusula revela uma garantia individual. Precisamos voltar os olhos à origem da quadra atual. De nada adianta reduzir a idade alusiva à responsabilidade penal e deixar mantida a situação de hoje, em que os jovens não têm oportunidade no mercado. Há desequilíbrio entre oferta de mão de obra e criação de empregos, não bastasse o consumismo desenfreado. Mais do que isso, a população carcerária carece de administração maior, na qual se procure assegurar direitos e garantias inerentes à dignidade do homem. A Constituição Federal fica em segundo plano no que contém regras direcionadas a preparar o reeducando para o regresso à convivência social. Refiro-me à previsão de os reeducandos serem separados ante o crime cometido, a idade e o sexo. Quanto a este, tem-se a observação, mas, relativamente aos demais fatores, a resposta é negativa. Cumpre ao Estado preservar a integridade física e moral do reeducando, o que, conforme estampado nos veículos de comunicação, não ocorre. O rol constante do artigo da Lei de Execução Penal é olvidado. Por isso mesmo, o Conselho Nacional de Justiça fez mutirão para verificar a situação dos custodiados. Quanto a esses, em inversão da ordem natural das coisas, que direciona a apurar e, só depois, prender, chegou-se a população provisória em percentagem praticamente igual à dos condenados com sentença transitada em julgado. A toda evidência, a solução da problemática não está na redução da maioridade penal, mas na assunção pelo Estado dos deveres a ele atribuídos, inclusive bem estruturando as defensorias públicas.

 

Direitos humanos – O que o STF pode fazer para determinar que o sistema carcerário no Brasil sofra uma reforma, partindo, principalmente, pelo combate a forma desumana de como são mantidos os presos, diante da superlotação das cadeias, e ainda a grande dificuldade de correção do infrator nesse meio?

Marco Aurélio - O Judiciário é um órgão inerte. Atua apenas mediante provocação dos legitimados para a propositura desta ou daquela ação. Reafirmo que as providências hão de ser adotadas pelo Executivo. Enquanto isso, chegando à última trincheira da cidadania, que é o Supremo, processo a envolver a forma desumana de tratamento dos presos, continuará o Tribunal a tomar medidas.

 

Mensalão – Como o senhor avaliou a decisão do presidente do STF de não declarar a prisão imediata dos réus do mensalão (condenados pela participação em um esquema de desvio de dinheiro público, envolvendo o mandato do ex-presidente Lula/2003-2006)? E o que o senhor espera desse período aberto para que os embargos das defesas sejam apresentados?

Marco Aurélio - Há na Carta Federal princípio básico, o da não culpabilidade. Somente se pode partir para a execução do título judicial condenatório quando já não cabe mais recurso visando modificá-lo. Atentou o Presidente do Tribunal para o arcabouço jurídico-constitucional, a sequência natural das coisas, cuja força é insuplantável. Até aqui, não houve sinalização de necessidade de inverter-se essa ordem, implementando-se a prisão preventiva. Paga-se um preço por se viver em um estado democrático e é módico, estando ao alcance de todos – o respeito irrestrito às regras estabelecidas. No tocante à fase atual do processo, deve-se aguardar o término do prazo para os embargos declaratórios e apreciação daqueles interpostos. Se veicularem pleito de empréstimo de eficácia modificativa ao julgamento formalizado, cumprirá observar o contraditório, com audição do Ministério Público. A celeuma maior ainda virá e diz respeito à adequação ou não dos embargos infringentes a serem distribuídos a outro relator sem que se tenha a revisão. Isso porque o preceito no qual versados está no Regimento Interno do Supremo e vem de um período em que a este era permitido normatizar relativamente a ações e recursos da respectiva competência. Sob o ângulo formal, descabe cogitar de inconstitucionalidade, porquanto, à época em que editadas as regras, ao Tribunal incumbia fazê-lo. Surge discussão no que, em 1990, o Congresso Nacional editou a Lei nº 8.038/90 e, ao disciplinar as ações penais da competência do Supremo e do Superior Tribunal de Justiça, não previu o recurso. Existe mais um elemento complicador, o ligado ao sistema. Indago: são admitidos embargos infringentes contra decisão do Supremo em ação penal e o mesmo não ocorre em ação penal de competência originária do Superior Tribunal de Justiça? Com a palavra, o Colegiado, que, mais cedo ou mais tarde, enfrentará a questão. Vale notar que, tanto quanto possível, deve ser viabilizado o direito de defesa.

 

Campanhas eleitorais – Dados do TSE mostram que nas eleições de 2012 tiveram candidatos que comprovaram doações de até R$ 3,5 bilhões para campanha eleitoral. Um montante muito superior a maior remuneração de prefeito e vereador que possa existir. Como o senhor avalia o processo de vantagens e desvantagens do atual modelo de financiamento de campanhas no Brasil, e o que é preciso ser feito para que se haja funcionamento realmente democrático das instituições públicas?

Marco Aurélio - O sistema pátrio de financiamento é misto, ou seja, tem-se a participação do Poder Público mediante o fundo partidário e o horário de propaganda eleitoral nos veículos de comunicação, quando se verifica a compensação destes sob o ângulo tributário e a participação de pessoas naturais e jurídicas de direito privado. Aliás, quanto à doação por parte destas, o tema está submetido ao Supremo por meio de ação ajuizada, se não me falha a memória, da relatoria do ministro Dias Toffoli. Sou favorável ao financiamento estritamente público, com regras rígidas se vier a ocorrer aporte da iniciativa privada. Para a sociedade, sai muito caro o envolvimento desta última no que, mais à frente, ocupada a cadeira pelo candidato, há a inevitável cobrança do financiamento mediante todos os tipos de atos.

 

PEC da celeuma STF X Congresso - Porque os ministros do STF encaram como uma retaliação a PEC que visa submeter decisões do Supremo ao Congresso? O que isso representaria para o país? E quais providências o STF pode tomar para impedir a aprovação dessa PEC?

Marco Aurélio - Diziam os antigos filósofos materialistas gregos que nada surge sem uma causa, que tudo possui uma razão. Isso encerra o princípio do determinismo. Revela-se sintomático que a proposta de emenda à constituição tenha vindo à balha quando se está no auge da Ação Penal nº 470, valendo notar a participação, na comissão que a admitiu, por enquanto, ainda não foi discutida a matéria de fundo –, de dois réus desse processo. É cedo, muito cedo, para definir algo. Deve-se aguardar a manifestação dos dois grandes Colegiados, que são a Câmara e o Senado da República, para, depois, se provocado o Supremo quanto à abolição de cláusulas pétreas – refiro-me à independência dos Poderes e aos direitos individuais –, tendo presente o acesso ao Judiciário, haver a análise do que transformado em emenda constitucional. Presumindo o que normalmente ocorre e não o extravagante, o teratológico, imagino que não chegaremos a enfrentar a arguição de inconstitucionalidade de emenda constitucional presentes o texto da Carta e as cláusulas pétreas atinentes à separação dos Poderes e aos direitos e garantias individuais.

 

Investigação do MP – O senhor concorda com o posicionamento dos delegados de polícia quando buscam retirar do Ministério Público o direito de investigação dos fatos, alegando que o MP extrapola suas atribuições quando além de acusar, como é de sua competência, assume o papel de apuração que caberia às Polícias?

Marco Aurélio - Penso que a emenda constitucional em curso não tem sequer razão de ser. Hoje, a Carta Federal já distingue a investigação para efeito da propositura da ação civil pública daquela visando colher elementos que possibilitem ao Estado-acusador – personificado nos integrantes do Ministério Público – propor a ação penal. Segundo a ordem jurídica em vigor, o Ministério Público pode e deve provocar a instauração de inquérito e acompanhá-lo, inclusive requerendo diligências. O inquérito corre na esfera policial. Os órgãos previstos no artigo 144 da Constituição Federal exercem a polícia judiciária. O Ministério Público, em possível ação penal, é parte e, portanto, não tem a obrigação de manter a equidistância própria aos demais órgãos, quer a Polícia Civil, quer o Judiciário.

 

Investigação do MP II - Promotores afirmam que a participação do MP foi essencial para se instaurar o processo do mensalão, e pesam que, diante da certa morosidade para os julgamentos no Judiciário, talvez devido ao grande volume de processo, retirar o MP da apuração dificultaria ainda mais o envio de ações ao Judiciário. Como o senhor avalia essas considerações?

Marco Aurélio - Como bom carioca, costumo dizer que não interessa ao Ministério Público, e já o integrei no ramo trabalhista, colocar a estrela no peito e o revólver na cintura, substituindo-se à Polícia Civil e acumulando dupla função – a de investigação para efeitos penais e a de titular da ação a ser proposta uma vez coligidos elementos quanto à materialidade delituosa e indícios de autoria. Toda concentração de poderes mostra-se perniciosa. Que o Ministério Público continue atuando como o faz, até mesmo fiscalizando a atuação da Polícia Civil e requerendo aos órgãos competentes o que entender de direito!

 

Morosidade no Judicário - Há diversas críticas de que a manutenção do Poder Judiciário é muito cara, contudo o ritmo de atuação do Poder é moroso quanto ao julgamento das ações. Como o senhor avalia essas ponderações? E como solucionar essa, chamada, “lentidão”?

Marco Aurélio - O Judiciário fica responsável pelo restabelecimento da paz social momentaneamente abalada pelo conflito de interesses. Consubstancia tipo penal a justiça pelas próprias mãos. Então, é impensável o afastamento do acesso ao Judiciário, que está previsto na Constituição Federal e encerra cláusula pétrea. Relativamente à morosidade, houve, de 1988 para cá, uma conscientização maior da população quanto a direitos e garantias individuais. Atualmente, o cidadão já não mais silencia quando tem um direito espezinhado. Busca, no Judiciário, a solução do conflito de interesses. No tocante à agilitação do processo, cabe sempre o aprimoramento, conciliando-se valores, conciliando-se a celeridade processual com o conteúdo e, mais do que isso, com as balizas inerentes ao devido processo legal.

 

Foro privilegiado – Para o senhor a existência do foro privilegiado é bom para o andamento da Justiça, ou esse dispositivo legal deveria ser eliminado pelo Congresso?

Marco Aurélio - Em votações no Plenário do Supremo, tenho consignado que espero viver o dia em que vingará o tratamento igualitário dos cidadãos. O foro privilegiado, ou melhor, o foro por prerrogativa de função, deve ser afastado, porque é incompatível com os ares democráticos experimentados hoje pela população brasileira.

 

Igualdade – O presidente do STF, em sua posse destacou o déficit de Justiça no país, considerando que nem todos os brasileiros são tratados com igualdade quando buscam a Justiça. O senhor concorda? 

Marco Aurélio - Julgo os colegas por mim. Atuo a partir da ciência e consciência possuídas e afirmo que processo não tem capa, tem conteúdo. Conforme disse, as noções básicas alusivas à cidadania estão robustecidas. Cumpre aparelhar, de modo positivo, as defensorias públicas para que prestem assistência jurídica e judiciária àqueles que não podem contratar um advogado sem prejuízo do próprio sustento.

 

Estado laico – Ministro, tendo em vista que vivemos em um Estado laico a presença daquele crucifixo no plenário do STF, e outros símbolos religiosos em prédios públicos, não se caracteriza como uma contradição?

Marco Aurélio - Reporto-me ao voto que proferi na ação alusiva à interrupção da gravidez quando constatada a existência de feto anencéfalo. Realmente, nada justifica o crucifixo na sala maior de sessões do Supremo bem como em outros prédios públicos. O estado é laico e não religioso. Além desse aspecto, há a impossibilidade de discriminação religiosa, mas continuamos com esses símbolos, inclusive na moeda em circulação. Consta desta, embora grafada de forma minúscula, quase imperceptível, a frase “Deus seja louvado”.

 

Da redação Universo Político.com